
Relutei, adiei a leitura, tentei ler as primeiras páginas, troquei de livro. Lí todas as obras disponíveis na minha biblioteca até me decidir pelo enfrentamento de uma realidade que, apesar de saber existir, tinha certeza que iria me chocar, doer, assustar. E não estava errada. A trajetória de Ishmael é inacreditável.
O menino de 11 ou 12 anos que recitava William Shakespeare para a família e seus amigos da tribo, gostava de música e sonhava, em meio às peripécias de ainda criança, se vê diante da morte de seus familiares e amigos, numa guerra cruel e sanguinária. Torna-se soldado do governo, que o inicia no mundo das drogas. É resgatado pelo UNICEF e reabilitado. No entanto, do grupo levado para tratamento ele foi o único sobrevivente, mas levou consigo todas as terríveis lembranças, os pesadelos, a enxaqueca que atormentava seu frágil corpo.
“ (...) Lembranças das quais às vezes eu gostaria de me livrar, apesar de saber que são uma parte importante do que é minha vida, de quem sou agora (...) Hoje vivo em três mundos: meus sonhos, e as experiências de minha nova vida, que desencadeiam memórias do passado”. P.22
Lendo o livro de Ishmael pude entender um pouco da realidade de nossos meninos-soldados vivendo a guerra civil carioca, obedecendo as ordens dos senhores do tráfico e sendo abastecidos, por estes, de todo o tipo de droga. Pude compreender que a crueldade não tem fronteiras, ela está aqui, bem perto de nós, brasileiros que fecham os olhos para os seus vizinhos, ignoram o problema e buscam respostas fáceis e apaziguadoras de suas consciências.
Relutei em ler, fiquei com medo, sabia que me atingiria, só não espera que me fizesse refletir sobre minha posição diante de um problema similiar e tão próximo. Pior, a reflexão mostrou como estou passiva. Discurso nunca resolveu nada!
Todos deviam conhecer esse relato franco, sem exibicionismo, de grande valor literário. O autor narra com beleza artística sua própria tragédia.

