quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Triologia MILLENNIUM - Stieg Larsson

TRIOLOGIA MILLENNIUM

Um dos maiores êxitos no gênero de mistério dos últimos anos é a triologia Millennium, escrito por Stieg Larsson, jornalista e ativista político muito respeitado na Suécia, que morreu subitamente em 2004. Seus livros não só alcançaram o topo das vendas nos países em que foram lançados (além da própria Suécia – onde uma em cada quatro pessoas leu pelo menos um exemplar da série –, a Alemanha, a Noruega, a Itália, a Dinamarca, a França, a Espanha, a Inglaterra e agora o Brasil), como receberam críticas entusiasmadas.
A obra é a abordagem de duas situações bem definidas: o jornalismo investigativo e o preconceito ainda existente contra a mulher. A mulher escolhida por Larsson é atípica: franzina, com inteligência acima da média, “expert” em informática, completamente tatuada, além de portadora de uma estranheza totalmente incompreensível, porém sedutora. Na Lisbeth Salander o autor conseguiu centralizar um imenso número de mulheres, várias personalidades femininas numa só personagem. A mulher camaleoa, poderosa e frágil (quando apaixonada).
O Jornalismo é quase divinizado na narrativa de Larsson – talvez por sua formação acadêmica – não há, em nenhum dos volumes qualquer crítica à seriedade do jornalismo na Suécia. As soluções para a corrupção, as injustiças sociais e outras patologias humanas, são atribuídas ao jornalismo, com isso lhe é cobrado o comprometimento com o social, com a justiça e o cidadão.
Larsson nos oferece uma leitura lúdica, mas não inócua. Um divertimento instigante numa linguagem fácil que não deixa margem de erro, não há nada a buscar nas entrelinhas. Sua narrativa é direta e objetiva, como num filme policial de qualidade duvidosa. O mérito está na tecedura, na escolha do tema e na sua exploração. Pela primeira vez leio uma obra na qual a mulher é retratada com realidade (apesar do aparente exagero). Todas as mulheres vivem em Salander; de todas as classes sociais, de todas as crenças, de todas as opções sexuais, as mulheres exploradas e as exploradoras.

São três volumes: Os homens que não amavam as mulheres, A menina que brincava com fogo e A Rainha do Castelo de Ar. O que mais gostei foi o último, onde o autor se esmera na técnica narrativa e consegue prender nosso interesse em cada página das mais de 600 que o livro possui.
Indico a leitura sem medo de errar, tenho certeza que todos gostarão de viver as aventuras (e desventuras) desses dois personagens apaixonantes.

domingo, 18 de outubro de 2009

ARCA RUSSA - Aleksandr Sokúrov


A simples realização de “Arca Russa” (Russkij Kovcheg, Rússia/Alemanha, 2002) já seria suficiente para inscrever o nome do cineasta Alekxandr Sokurov em uma nova página da história do cinema. A rigor, o longa-metragem nem precisava ser bom para conseguir marcar esse tento. É simples: “Arca Russa” consegue a proeza tecnológica de ter um único plano-seqüência. Ou seja, o filme inteiro numa tomada única. São 97 minutos gravados em um só fôlego, sem cortes. Uma proeza tecnológica fenomenal. Quanto a isso, não há discussão. Mas o projeto leva, sim, a uma série de reflexões acerca da natureza da arte cinematográfica.
Muita gente acredita que “Arca Russa” oferece uma pista inequívoca daquilo que poderá ser o futuro do cinema. Como grandes clássicos do passado (”Cidadão Kane”), o trabalho de Sokurov exigiu que um equipamento especial fosse adaptado para poder realizar o projeto ambicioso. O cineasta e o diretor de fotografia, Tilman Büttner, tiveram que inventar uma maneira de captar as imagens de forma 100% digital. Essa tecnologia já existia, mas não a possibilidade de gravar 97 minutos de filme sem cortes. O filme digital, em tese, teria que ter cortes. Por isso, a câmera utilizada no longa precisou ser ligada a um disco rígido especial, que armazenava os dados digitais à medida em que as cenas iam sendo captadas.

A suntuosidade do projeto também exigiu uma coreografia monumental. Não é admirar que Sokurov tenha sonhado com o projeto durante 15 anos, e que nada menos do que sete meses tenham sido gastos apenas para montar a coreografia do trabalho, que foi gravado em um único dia: 23 de dezembro de 2001. Por sinal, o filme tinha mesmo que sair naquele dia, querendo ou não, pois o Hermitage só permitiu o projeto porque não precisaria fechar a casa por mais tempo.
Um breve resumo do enredo, acrescido de alguns números, podem dar uma idéia do tamanho hercúleo da tarefa. O longa narra um passeio de dois personagens por 35 salas, pátios, corredores e escadas do museu Hermitage, em São Petersburgo (Rússia). Não é uma tour comum; nela, 3 mil figurantes, todos devidamente caracterizados com os figurinos pomposos, característicos da monarquia russa, encenam grandes e pequenos momentos de 300 anos da história do país, entre os séculos XVII e XX. Os espectadores ficam conhecendo personagens históricos como os czares Pedro o Grande, Catarina a Grande, Catarina II e Nicolau.
Do ponto de vista técnico, portanto, o projeto é capaz de fazer uma campanha logística como a responsável pela trilogia “O Senhor dos Anéis” parecer festa de aniversário de criança. Além disso, a fotografia, a cenografia e os figurinos se casam maravilhosamente, gerando um filme rico de conteúdo e com imagens de beleza plástica inconfundível. Sokurov logra sucesso em um dos objetivos declarados de “Arca Russa”: retratar o museu Hermitage como uma espécie de repositório orgânico, quase vivo, da cultura de um povo. O filme atinge admiravelmente esse propósito, inclusive quando realiza a crítica dessa mesma cultura, através do enigmático personagem do Europeu (Sergei Dreiden). Ele não economiza ironia, ao comentar sobre a vontade dos monarcas russos em copiar os franceses.

Quando se deixa de lado a parte técnica do filme, porém, sobram questões que merecem reflexão. Há uma pergunta que parece fundamental: por que “Arca Russa” precisou ser filmado em uma tomada só, sem cortes? Qual a razão para a utilização dessa técnica específica? Será que o trabalho ficaria pior se fosse filmado de modo tradicional? Essa pergunta permanece sem resposta. Projetos que tentaram experiências parecidas (“Festim Diabólico”, de Hitchcock, e o recente “Timecode”, de Mike Figgis) tinham justificativas mais sólidas. A película de Hitchcock necessitava de um encapsulamento rigoroso dos limites de tempo e espaço, para gerar a tensão necessária no espectador. Já o trabalho de Figgis tem uma semelhança muito maior com o longa de Sokurov, pois inclusive foi filmado com tecnologia digital de captação de imagens. Mas “Timecode” recorta um mesmo período do dia e o narra em quatro janelas simultâneas que se abrem na tela do cinema. Portanto, a continuidade das imagens também é fundamental.
Em “Arca Russa”, nenhuma resposta a essa pergunta satisfaz inteiramente. Parece óbvio, entretanto, que Sokurov tenta travar um diálogo com uma geração anterior; particularmente, com Sergei Eisenstein. O mestre formalista foi o homem que elevou o conceito de montagem ao nível de arte. Através de obras como “O Encouraçado Potemkim” (1925), Eisenstein mostrou que o cinema criava significado através da justaposição de planos – ou seja, através do corte. Em outras palavras, que o significado que emanava do choque entre duas tomadas isoladas não estava, sozinho, contido em nenhuma delas. A cena de uma criança chorando não significa nada além disso. Um plano de um prato vazio também não. Juntas, essas duas imagens geram uma imagem mental na platéia: fome. Esse conceito foi, depois, ampliado e refinado pelos gigantes na arte do filme, como Stanley Kubrick. Todo o cinema contemporâneo presta tributo a Eisenstein.
Talvez “Arca Russa” tenha a pretensão de oferecer um caminho alternativo ao criador de “Potemkim”, porque, de fato, o trabalho de Sokurov consegue ultrapassar esse problema. Mesmo sem cortes, o conterrâneo de Eisenstein também consegue construir imagens mentais que não estão estritamente contidas nas cenas que vemos na tela. Os 30 minutos finais do longa são o melhor exemplo disso – e também o melhor momento do filme. Vemos a última ceia da família Romanov (evocando a Santa Ceia). Depois, o último baile dos nobres russos, antes da revolução de 1917. A saída das centenas de nobres do prédio principal, em silêncio, imprime uma sensação de nostalgia e desolação que correspondem, em última análise, à imagem mental que a montagem de Eisenstein sempre se preocupou em evocar. O fato de o Europeu avisar ao colega-câmera que não pretende deixar o lugar apenas reforça essa nostalgia. Trata-se do final de uma era, o último suspiro de um período. A calma antes da tempestade.

Nada disso teria sido alcançado sem a ajuda, repito, de uma coreografia rigorosa e nunca menos do que espetacular. Nos 97 minutos, a câmera percorre um caminho literalmente impossível, subindo escadas em espiral, passando por sobre o fosso da orquestra (que executa uma ópera para Catarina, a Grande), executando giros de 360 graus e realizando um verdadeiro balé no trecho final, durante o baile de gala dos Romanov, quando chega quase a levantar vôo. Essas proezas técnicas imprimem um ritmo um pouco mais ágil à narrativa, que possui (como qualquer outro filme que usa a noção de tempo real) uma progressão naturalmente lenta. A câmera praticamente não pára, mas também não acelera a ação. Consegue, assim, um meio termo interessante entre a narração e a reflexão. Por tudo isso, “Arca Russa” é um grande programa para os amantes de um cinema que procura algo novo, ao invés de apenas repetir fórmulas consagradas.

Arca Russa (Russkij Kovcheg, Rússia/Alemanha, 2002)
Direção: Alekxandr Sokurov
Elenco: Sergey Dreiden, Maria Kuznetsova, Mikhail Piotrovsky, David Giorgobiani
Duração: 97 minutos

FONTE: http://www.cinereporter.com.br/dvd/arca-russa/