A leitura de “A Sombra do Vento” de Carlos Ruiz Zafón é uma experiência impar, onde a reflexão objetiva, as idéias filosóficas, sociológicas e/ou políticas cedem espaço para o simples sentir. Substantivado o verbo, ampliada a semântica, o sentir se torna o nome da subjetividade levada às suas mais assustadoras conseqüências: a perdição pela insanidade.
Zafón propicia ao leitor essa viagem alucinada/alucinante por uma realidade cruel – nem por isso desprovida de lirismo – e verdadeira, carregada de fantasia. É isso mesmo, CONTRADIÇÃO ABSOLUTA.
Ao fechar o livro e, ato contínuo, abraçá-lo junto ao peito, tem-se a certeza que se esta diante da própria história. Comprovada a inutilidade de todas as tentativas de tornar-se especial, está-se sempre repetindo existências antepassadas. A vida é um eterno repetir de histórias, a exemplo do apresentado no filme “Les um et les autres”, de Claude Lelouch, 1981.
A obra, além de metalingüística, pois enaltece e canta com primor a arte literária, tanto por parte do escritor como do leitor: “[...] Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu, e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa os olhos pelas suas páginas, seu espírito cresce e a pessoa se fortalece.” P.9, é também, ao mesmo tempo, suspense e mistério.
O primeiro contato de Daniel, um dos inúmeros narradores, com um livro, efetua a mudança no menino de dez anos que permeará sua existência adulta.
“[...] poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho ao seu coração. As primeiras imagens, o eco dessas palavras que pensamos ter deixado para trás, nos acompanham por toda a vida e esculpem um palácio em nossa memória ao qual mais cedo ou mais tarde – não importa os livros que leiamos, os mundos que descubramos, o quanto aprendamos ou nos esqueçamos – iremos retornar.” P.11
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“... os livros são espelhos: neles só se vê o que possuímos dentro...” p.174
Carlos Ruiz Zafón
A narrativa é cinematográfica, fragmentada, com personagens narradores, misturando estilos. A linguagem ferina e cruel provoca náusea. O impacto faz da obra um fenômeno editorial pela ousadia do autor.
“ [...] Daniel ‘as pessoas são muito malvadas.’ ‘Malvadas não – observou Fermín – Imbecis, o que não é a mesma coisa. O mal pressupõe uma determinação moral, intenção e certa inteligência. O imbecil ou selvagem não pára para pensar ou raciocinar. Age por instinto, como besta de estábulo, convencido de que está fazendo o bem, de que sempre tem razão e orgulhoso de sair fodendo, desculpe, tudo aquilo que lhe parece diferente dele próprio, seja em relação à cor, credo, idioma, nacionalidade (...). O que faz falta no mundo é mais gente ruim de verdade e menos espertalhões limítrofes.’ P.129
“[...] Observei aquele grupo de despojos humanos (velhos num asilo) num canto e sorri. Sua mera presença me pareceu um estratagema de propaganda em favor do vazio moral do universo e da brutalidade mecânica com que este detruía as peças que já não lhe pareciam úteis.”
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... “A mãe natureza é uma grande puta, é a triste realidade.” P.209
“[...] Juanito só sabe soltar “peidos” e esses aí só sabem rir e aspirá-los. Com vê, a estrutura social aqui (no asilo) não é muito diferente da do mundo lá fora.” P. 210
Priorizado o sentir, secundarizado o racional, a obra de Zafón dá o alerta final para a perda maior do homem nos tempos da mídia de imagens na voz de Beatriz:
“[...] Bea diz que a arte de ler está morrendo muito aos poucos, que é um ritual intimo, que um livro é um espelho e só podemos encontrar nele o que carregamos dentro de nós, que colocamos nossa mente e alma na leitura, e que esses bens estão cada dia mais escassos.” P 396
Gostaria de propor aos meus leitores (que não são muitos), uma brincadeira. Vamos colocar no espaço para comentários o título e o nome do autor do nosso primeiro livro, seguido de nossas impressões imediatas e das influências que exerceram em nossas vidas até agora. Para motivá-los darei o primeiro depoimento.
Minha primeira leitura foi aos nove anos. Na biblioteca da escola peguei um volume da Edição Maravilhosa – As Aventuras de Marco Pólo – Ano I no.12 da Coleção Clássicos Ilustrados, de Adolfo Aizen. Fiquei tão impressionada, que não falava em outra coisa. Meu pai, motivado pelo meu interesse, me presenteou com uma coleção de cem livros infantis – que possuo até os dias de hoje. A viagem que fiz junto com Marco Pólo despertou em mim a necessidade de repetir aquela emoção. Descobri, e mantenho até a idade outonal o prazer por essas aventuras fantásticas pelas páginas de um livro.